Fraudes Martírios Cristãos – II (tradução)

Título original: “’The Myth of Persecution’: Early Christians weren’t persecuted”
Disponível em: http://www.salon.com/2013/02/24/the_myth_of_persecution_early_christians_werent_persecuted/
Acesso em: 12/1/14

Os romanos não perseguiram, caçaram ou massacraram os seguidores de Jesus, diz uma historiadora da igreja primitiva
Laura Miller

Um mito moderno nasceu imediatamente após o massacre da Escola Secundária de Columbine. Rolava uma estória sobre um dos assassinos ter perguntado a uma das vítimas, Cassie Bernall, se ela acreditava em Deus. Bernall, alegadamente teria respondido “Sim” imediatamente antes dele lhe dar um tiro. A mãe de Bernall escreveu um memorial intitulado “Ela disse sim: O Improvável Martírio de Cassie Bernall”, um tributo à corajosa fé cristã de sua filha. então, exatamente como o livro que estava sendo publicado, um estudante que se escondia perto de Bernall disse ao jornalista Dave Cullen que o diálogo nunca acontecera.

Embora o novo livro de Candida Moss, “O Mito da Perseguição: Como os Primitivos Cristãos Inventaram um Estória do Martírio” seja sobre os três primeiros séculos que se seguiram à morte de Jesus, ela acerta ao citar este paralelo hodierno. O que Bernall de fato disse e fez nos instantes antes de sua morte de fato importam, enfatiza Moss, se vamos classificá-la como uma “mártir”. Mesmo assim, equívocos e deturpações poderão surgir em breve. O público pode ter acesso à história errada mesmo nesta era midiática e bastante coberta pelo noticiário – e isso a despeito de haver entre nós testemunhas oculares. O que dizer, então, dos relatos em terceira-mão, enormemente revisados, com intenções ocultas e anacrônicas, sobre os mártires cristãos?

Moss, professora do Novo Testamento e de cristianismo antigo da Universidade de Notre Dame, desafia algumas das mais sagradas lendas da religião que questiona o que ela chama de “a narrativa da escola dominical de uma igreja de mártires, de cristãos acossados nas catacumbas, reunindo-se em segredo para evitar serem presos e impiedosamente lançados aos leões apenas por suas crenças religiosas”. Nada disso é verdade, ela afirma. Nos 300 anos entre a morte de Jesus e a conversão do imperador Constantino, talvez tenham havido 10 ou 12 anos esparsos durante os quais os cristãos foram proscritos pelas autoridades imperiais de Roma e, mesmo assim, a obrigatoriedade de adotar essa iniciativa foi aleatória – indiferente, em muitas regiões embora severa em outras. “Os cristãos nunca foram”, escreve Moss, “vítima de perseguição dirigida e sustentada [contra eles].”

Muito da seção do meio de “O Mito da Perseguição” é extraído de uma leitura detalhada dos seis “assim chamados relatos” dos primeiros mártires da igreja. Estes incluem Policarpo, um bispo de Smirna, no segundo século, que foi queimado na estaca. E Santa Perpétua, uma bem nascida jovem mãe executada na arena de Cartago com sua escrava, Felicidade, no início do terceiro século. Moss aponta cuidadosamente as inconsistências entre esses contos e o que sabemos da sociedade romana, nosso entendimento das heresias, que nem sequer existiam quando os mártires foram mortos, e referências a tradições dos mártires sequer ainda seriam submetidas. Naturalmente, há algum fundo de verdade nessa história, ela explica, tanto quanto a primeira história da igreja escrita em 311 por um palestino chamado Eusébio. Apenas é impossível separar a verdade das invenções coloridas, da maquiagem e das tentativas de consolidar as ortodoxias de uma era anterior.

Moss também examina registros romanos que sobreviveram até nossos dias. Ela observa que durante a única campanha romana, anticristã organizada, sob o imperador Diocleciano entre 303 e 306, os cristãos foram expulsos dos serviços públicos. Suas igrejas, tais como uma, na Nicomédia, na rua do palácio imperial, foram destruídas. Assim, como mostra Moss, se os cristãos, em primeiro lugar, ocupavam altos postos e construíram sua igreja “na frente da entrada principal do palácio do próprio imperador”, dificilmente estariam se escondendo em catacumbas antes de Diocleciano emitir seus decretos contra eles.

Isto não nega que alguns cristãos tenham sido executado de modo horrível sob confdiçõers que consideraríamos grotescamente injustas. Mas é importante, explica Moss, para distinguir entre “ser perseguido” com “ser processado”. Os romanos não queriam sustentar uma população de prisioneiros, portanto a pena capital era comum par muitas ofensas menores; você poderia ser sentenciado a ser espancado até à morte por ter escrito uma canção imoral. Moss faz distinção entre esses casos em que os cristãos são perseguidos simplesmente por serem cristãos daqueles em que foram condenados por participarem em atividades que os romanos consideravam subversiva e traiçoeiras1. Dados os “ideais comuns e as estruturas sociais” que os romanos consideravam como essenciais para o império, tais transgressões poderiam incluir negar publicamente o status divino do imperador, rejeitar serviço militar ou se recusar a aceitar a autoridade de um tribunal. Num dos capítulos mais fascinantes, Moss tenta explica quão desconcertantes e aborrecidos os cristãos eram para os romanos (para quem o “pacifismo não existia como conceito”), quando pensavam sobre os cristãos como um todo.

Os cristãos eram levados aos tribunais romanos por vários motivos, mas quando lá chegavam, tinham orgulho em se apresentar e agir, como, por exemplo, um crente de nome Libério que afirmou em certa ocasião: “que não podia respeitar o imperador; que ele apenas respeitava a Cristo”. Moss compara estas palavras às dos “réus dos dias de hoje que afirmam não reconhecer a autoridade da corte ou do governo, mas apenas a autoridade de Deus. Para americanos modernos, como para os antigos romanos, isto parece tanto sinistro como ligeiramente insano”. Não é estranho, portanto que os cristãos primitivos tivessem desenvolvido uma certa paixão pelo martírio. Sofrer comprovava tanto a piedade do mártir como a autenticidade da própria religião e, além disso, garantia a você, imediatamente, um assento de primeira classe no céu (os demais cristãos tinham que esperar até o Dia do Julgamento). Há relatos de fanáticos que deliberadamente procuravam uma oportunidade de morrer por sua fé, inclusive uma turba que bateu à porta da autoridade romana na Ásia Menor pedindo para ser martirizada, tendo que desistir depois que ele não se permitiu ser convencido a atendê-los.

Moss não pode ser classificada como uma escritora natural ou fluente, mas ela é minuciosa, batalha pela clareza e é genuinamente impulsionada por seu interesse sobre a influência do mito do martírio nas sociedades ocidentais. “A ideia da igreja perseguida é quase inteiramente uma invenção do 4º século e posterior”, ela escreve. Este foi, significativamente, um período durante o qual a igreja se tornou “politicamente segura” graças a Constantino. Mesmo assim, em vez de prover um relato fiel dos primeiros anos da cristandade, eruditos e clérigos do quarto século, produziram contos de violência horrível e sistêmica . Estas estórias foram sutilmente (ou não tão sutilmente) usadas como propaganda contra ideias ou seitas heréticas. Elas também serviram de entretenimento abominável para crentes que pessoalmente, estavam relativamente seguros. Moss compara isto ao deliciamento suburbano atual ao assistir um filme de horror.

Atualmente, os polemistas continuam a utilizar a grandemente internalizada crença numa igreja perseguida – e moralmente justa – como um taco político para demonizar seus oponentes. Moss enxerga um vínculo direto entre a valorização dos mártires e a retórica imbecil da direita sobre “guerra contra a cristandade”. “Você não pode colaborar com quem o está perseguindo”, aponta Moss com astúcia. “Você tem que se defender”.

Ela só é menos esperta é na crença de que expondo a falsa história de perseguição podemos, de alguma forma expurgar este enfoque paranoico das diferenças políticas. Um dos aspectos mais esclarecedores do “Mito da Perseguição” é a habilidade de Moss achar analogias contemporâneas para tornar o mundo antigo mais inteligível ao leitor mediano, tal como a estória de Cassie Bernall. Mas aquela estória tem uma lição adicional para nos oferecer sobre fatos impenetráveis e impalatáveis, a família e a igreja de Bernall não se deixaram afetar pelos colegas que estiveram presentes ao tiroteio e que desmascararam a lenda “Ela disse sim”. “Você pode afirmar que as coisas não aconteceram desse modo”, disse a um repórter, o pastor dos Bernalls, “mas a igreja não o aceitará. Para a igreja, Cassie sempre terá dito “sim”, e ponto final”.

Laura Miller é um escritora do Salon. Ela é a autora de “The Magician’s Book: A Skeptic’s Adventures in Narnia” e tem uma página na Web magiciansbook.com.

2 comentários sobre “Fraudes Martírios Cristãos – II (tradução)

  1. […] Por outro lado a proposta de Moss de que a direita americana fatura politicamente em cima dos martírios cristãos, que na verdade (segundo Moss) não aconteceram, é defendida pela autora Laura Miller numa segunda resenha aqui traduzida. […]

  2. Ivani Medina disse:

    Tudo na autobiografia do cristianismo é ficção. Quando iniciei minha pesquisa diletante acerca da origem do cristianismo, eu já tinha uma ideia formada que pode parecer esdrúxula: nada de Bíblia, teologia e história das religiões. Todos os que haviam explorado esse caminho haviam chegado à conclusão alguma. Contidos num cercadinho intelectual, no máximo, sabiam que o que se pensava saber não era verdade. Dentro desses limites reina a teologia e não a história. É isso o que a nossa cultura espera de nós, pois não tolera indiscrições. Como o mundo não havia parado para que o Novo Testamento fosse escrito, o que esse mesmo mundo poderia me contar a respeito dessa curiosidade histórica? Afinal, o que acontecia nos quatro primeiros séculos no mundo greco-romano, entre gregos, romanos e judeus? Ao comentar o livro “Jesus existiu ou não?”, de Bart D. Ehrman, exponho algumas das conclusões as quais cheguei e as quais o meio acadêmico de forma protecionista insiste ignorar.

    http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/paguei-pra-ver

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