O martírio cristão e as esquerdas

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Comentários do filósofo e professor Olavo de Carvalho sobre o livro:

Fonte: https://www.facebook.com/olavo.decarvalho
Publicado em: 12/1/14
Tema: Martírio dos cristãos nos primeiros séculos. Livro que afirma relatos serem uma fraude.

Eli Vieira está entusiasmado com o livro de Candida Moss que, segundo ele, prova que os relatos de martírios de cristãos no Império Romano foram, em linhas gerais, “uma fraude”. O livro é que é uma fraude. A autora exclui da lista de mártires todos os que não foram condenados explicitamente por praticar ritos cristãos. Por exemplo, os cristãos que eram mortos por recusar-se a prestar sacrifícios rituais ante o altar do imperador romano não eram, segundo ela, mártires cristãos, mas marginais punidos por uma saudável medida policial. Nesse sentido, todos os judeus que foram para os campos de concentração por outro motivo que não fosse a prática explícita do judaísmo não foram vítimas do nazismo. E, na URSS, todos os que foram fuzilados sem ser por motivo de propaganda pró-capitalista ostensiva também não são mártires do comunismo. O critério é tão obviamente preconceituoso e distorcido que quem leve a sério este livro deve ser considerado, de imediato, um cretino incurável ou um fanático perigoso.

Meus comentários:
O cristianismo primitivo é um de meus interesses principais. Graças aos livros de Bart D. Ehrman encontrei a resposta para algumas questões que considero básicas sobre o cristianismo primitivo que nunca tinha conseguido achar. Pude ler alguns livros publicados pelo Dr. Ehrman e constatar que se trata de um erudito, pesquisador do período inicial do cristianismo e suas conclusões sempre são embasadas em documentos ou trabalhos de outros eruditos. O livro de sua autoria “Did Jesus Exist?” contradiz com argumentos sólidos, vários autores que defendem o miticismo (a teoria de que o homem Jesus seria um mito, inventado pelos cristãos com base em outros mitos primitivos, como Mitra, Osíris, Dionísio etc).

O comentário do Olavo de Carvalho, me chamou a atenção para o livro “O Mito da Perseguição”, de Candida Moss. Não conheço a autora para avalisar sua honestidade intelectual, mas é possível se constatar que nesta obscura área de ataque ao cristianismo (o que teria acontecido nos três primeiros séculos de nossa era?), a ânsia política de provar “fraudes” dos primitivos cristãos – e do lucro fácil – levou alguns autores a fazer falsas afirmações, como é o caso do já comentado miticismo.

No caso do livro da prof. Moss, a falta de evidências que comprovem sua teoria é uma das acusações feitas pelo professor de teologia da Universidade Wycliffe de Toronto Ephraim Radner, cuja resenha, traduzida pode ser lida aqui

Por outro lado a proposta de Moss de que a direita americana fatura politicamente em cima dos martírios cristãos, que na verdade (segundo Moss) não aconteceram, é defendida pela autora Laura Miller numa segunda resenha aqui traduzida.

Alguns pontos de destaque nas duas resenhas são:
1 – O livro de Candida Moss é, usando-se o jargão da imprensa, matéria “requentada”. O assunto fora levantado pelo historiador inglês Edward Gibbon em sua obra “A História do Declínio e Queda do Império Romano”;
2 – A argumentação de Moss não é acompanhada do devido respaldo erudito;
3 – A autora tende a aceitar apenas o que apóia suas teses e rejeitar como inserção no texto original o que contradiz;
4 – A direita americana busca ganho político com o “mito” da perseguição aos cristãos hoje, como a religião, no passado faturou politicamente com as invenções sobre os mártires;
5 – Como no início dos cristianismo falsas estórias de mártires cristãos são criadas hoje;
6 – Nem todos os cristãos foram mortos porque eram cristãos. De fato, apenas uma minoria o foi. Os demais foram mortos por desafiar e desobedecer as autoridades constituídas; e,
7 – Como consequência da atitude descrita anteriormente, os cristãos fanáticos pediam para ser martirizados.

Dos pontos acima listados, dois merecem uma consideração mais detalhada.

O Viés Político
Me parece que toda essa preocupação “erudita” das esquerdas, relacionada ao cristianismo primitivo, longe de ser uma busca sincera pela verdade (termo ambíguo para a mente esquerdista), me parece que é, mesmo, um viés político: parte da campanha considerada necessária pelos esquerdistas de destruir o cristianismo.

O prof. Radner começa sua avaliação do livro lembrando que Candida Moss repete a argumentação de Gibbon em o “Declínio e a Queda do Império Romano”, não havendo portanto nada de especial em divulgar o que já se sabe de melhor fonte. Portanto, logo de início ele bota o dedo na ferida:

“Portanto, eis a ideia: os conservadores na América acreditam que os cristãos são ‘perseguidos’ por suas posições contra o aborto e o casamento homossexual mas essa é apenas o uso moderno de uma antigo ‘mito’ cristão que se baseia em fraude para demonizar os opositores e reavivar o fogo da intolerância.”

Por outro lado, Miller confirma Radner ao abrir sua matéria com os seguintes dois parágrafos:

“Um mito moderno nasceu imediatamente após o massacre da Escola Secundária de Columbine. Rolava uma estória sobre um dos assassinos ter perguntado a uma das vítimas, Cassie Bernall, se ela acreditava em Deus. Bernall, alegadamente teria respondido “Sim” imediatamente antes dele lhe dar um tiro. A mãe de Bernall escreveu um memorial intitulado “Ela disse sim: O Improvável Martírio de Cassie Bernall”, um tributo à corajosa fé cristã de sua filha. então, exatamente como o livro que estava sendo publicado, um estudante que se escondia perto de Bernall disse ao jornalista Dave Cullen que o diálogo nunca acontecera.

Embora o novo livro de Candida Moss, “O Mito da Perseguição: Como os Primitivos Cristãos Inventaram um Estória do Martírio” seja sobre os três primeiros séculos que se seguiram à morte de Jesus, ela acerta ao citar este paralelo hodierno. O que Bernall de fato disse e fez nos instantes antes de sua morte de fato importam, enfatiza Moss, se vamos classificá-la como uma “mártir”. Mesmo assim, equívocos e deturpações poderão surgir em breve. O público pode ter acesso à história errada mesmo nesta era midiática e bastante coberta pelo noticiário – e isso a despeito de haver entre nós testemunhas oculares. O que dizer, então, dos relatos em terceira-mão, enormemente revisados, com intenções ocultas e anacrônicas, sobre os mártires cristãos?

Contestando a alegação de que os martírios seriam apenas estórias mal contadas pelos cristãos para atrair discípulos, o prof. Radner passa a mostrar que o martírio cristão não se sustenta apenas com as perseguições do início do cristianismo, mas é uma realidade atualissima como provam os relatos frequentes de cristãos assassinados por sua fé no mundo islâmico, em ditaduras comunistas e em outras partes do mundo.

Alguns exemplos obtidos em consultas simples à internet podem provar de que lado está a verdade:

Perseguição religiosa assoma no horizonte da Ucrânia
Católicos de Shangai resistem com fé e heroísmo à perseguição
Lista 2014 dos países que mais perseguem os cristãos

Os Dois Tipos de Morte Causadas aos Cristãos

Talvez o aspecto mais interessante, responsável, inclusive por um equívoco no comentário do prof. Olavo de Carvalho, citado acima, é o principal argumento de Moss para justificar sua tese.

Ela dividiu os mártires cristãos em dois grupos:

  • O primeiro, um pequeno grupo de pessoas que foram mortas por siplesmente serem cristãs; e,
  • Um segundo grupo, bem maior, composto por contraventores que negavam a autoridade de Roma.

Moss afirma que esse segundo grupo era composto por fanáticos que se sentiam honrados em serem martirizados e até mesmo pediam isso.

“Os cristãos eram levados aos tribunais romanos por vários motivos, mas quando lá chegavam, tinham orgulho em se apresentar e agir, como, por exemplo, um crente de nome Libério que afirmou em certa ocasião: ‘que não podia respeitar o imperador; que ele apenas respeitava a Cristo’. Moss compara estas palavras às dos ‘réus dos dias de hoje que afirmam não reconhecer a autoridade da corte ou do governo, mas apenas a autoridade de Deus. Para americanos modernos, como para os antigos romanos, isto parece tanto sinistro como ligeiramente insano'”.

O viés político da questão mais uma vez se manifesta no comentário de Miller que condiciona ser “moderno” a achar esse tipo de atitude “tanto sinistro como insano”.

A prevalecer para todos os segmentos a conclusão de Candida Moss e de Laura Miller, todo perseguido político, não é na verdade um mártir, quando muito um "esquisito", um contraventor que foi punido de maneira justa porque agia contra a ordem das autoridades estabelecidas, inclui-se entre tais: Giordano Bruno, Galileo Galilei, Joaquim José da Silva Xavier, e os guerrilheiros mortos e, aqueles zumbis que, ainda conscientes, hoje governam o Brasil.

Mas obviamente o argumento de Moss só vale para os cristãos que vivem atrapalhando os comunistas com sua rejeição à ideologia das esquerdas. Para os aliados dos que estão no poder, seus mortos e vivos continuam sendo mártires injustiçados.

Dois pesos, duas medidas. Uma das maiores fraudes esquerdistas.

Mas livros não param de sair e é aí que o comentário do prof. e filósofo Olavo de Carvalho serve de alerta. Como escreveu a Marguerite Yourcenar em "Coup de Grace", "Os livros também mentem."

2 comentários sobre “O martírio cristão e as esquerdas

  1. Bom Dia. Meu nome – Marcelo Alves Dantas – Dr. Pedagógico da FATEBENE – Faculdade Teológica Bíblica de Ensino Evangélico. Mestrando em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo.

    Nesta mesma semana estou participando de um seminário do grupo de estudos Apocalípticos (Oracula), cujo tema é “Martírio no Cristianismo Primitivo – Discursos e Práticas”.

    Concordo que Candida Moss é uma exímia pesquisadora e que contribue em parte apenas para a compreensão da experiência religiosa dos cristãos primitivos. Entretanto, não concorda com a classificação absolutista de que os cristãos eram marginais ou coisa semalhante.

    Há cristãos e cristãos. Penso que os estratos sociais são muitos, bem como, o tempo e o espaço que envolvem as narrativas de textos, aos quais temos acesso. O que de certa forma deixa-nos claro a dificuldade da análise do cristianismo primitivo em si.

    Temos algumas luzes acesas que nos dão pequenos lampejos na diversidade dos estratos sociais e das experiências religiosas de grupos de cristãos e de representações de comunidades.

    A vários outros textos de Candida Moss que precisam ser analisados. Mas nos parece que sua enfase ao tratar do tema do Martírio está muito concentrada em literatura considerada apócrifa e não canônica. Embora para alguns não exista mais esta distinção, todavia penso os documentos possuem distinção própria pelo tipo de linguagem – discursos e práticas que apresentam.

    Assim, concluo dizendo que Candida Moss é mais uma voz que deve ser lida com muito cuidado e criticismo.

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